sexta-feira, 29 março, 2024

Os túneis à prova de americanos

Por Carlos Navarro*
As curvas na vida de um repórter. Passados mais de 50 anos do tempo em que um garoto, estudante secundarista que gostava de política e de dançar agarradinho bolero e rumba, metido a jornalista, apresentava um programa de rádio, noticiário, em uma cidade do interior. Era uma época em que a informação chegava lenta, de navio, ou pelas ondas do radio, que alcançavam a poucos. E o menino, muito compenetrado, noticiava no seu programa a guerra do Vietnam quase sempre pela ótica americana, pois notícias comunistas não furavam o bloqueio da propaganda continental. E se, eventualmente, furavam eram dadas com mais ênfase, mas era raro. Pois é, neste momento escrevo de Saigon, rebatizada de Ho Chi Minh quando os vietcongues correram com os americanos. Estou aqui e esse texto é uma evocação daquele tempo.
– Saigon…
– Helicópteros americanos impingiram mais uma dura derrota a vietcongues que desciam o delta do Mekong com suas canoas rústicas e frágeis…
A voz impostada, acentuando a fortemente o último fonema dos dissílabos e trissílabos, emprestava tom solene ao jovem apresentador do Noticiário N26, o programa noticioso da emissora. De segunda a sexta, precisamente ao meio dia menos quinze minutos, estava ele ao microfone da Rádio Emissora de Alagoinhas com sua equipe de repórteres, redatores, editores, apresentador e sonoplastas, que se resumia a ele mesmo e Vieira, do outro lado do aquário, ou quando não era Vieira, assumia o posto Alírio Pinheiro.
Aluno do ginasial, aos 14 anos a voz não tinha ficado bem definida. Do soprano melodioso do tempo de criança nos corais do convento da Piedade e do Seminário Central da Bahia, aos onze anos de idade, transitava agora entre o contralto e o tenor, mais para o primeiro, o que não o agradava. Queria ter voz de locutor, tipo Heron Domingues e o baiano Manoel Canário.
Eram os primeiros anos dos anos 1960. O garoto, líder estudantil, fora da sala de aula considerava-se altamente experiente na política eleitoral. Não votava, mas em 1960 observou e fez algumas incursões na campanha de Jânio Quadros. Dois anos depois, ainda sem idade para votar, agitou a estudantada na campanha de Waldir Pires ao governo da Bahia. A guerra fria que dividia o mundo chegava esmaecida à sua vida. As fontes de informação resumiam-se praticamente ao rádio, que ele não ouvia nunca porque nunca estava em casa, a não ser à noite, o que ficava difícil já que a mãe sempre reunia os vizinhos para acompanhar novelas. Os jornais chegavam atrasados um dia, às vezes dois, às vezes três. Contudo, eram o meio mais ágil e atualizado para quem não ouvia rádio. O noticiarista pegava-os no encalhe da banca do velho Solon, na Praça do Coreto. Quase sempre recebia o Jornal da Bahia, no qual começaria anos depois a carreira profissional. O jornal A Tarde chegava na quantidade certa, direcionada às pessoas melhores de vida, mais gradas. O velho Solon gostava do menino irrequieto que todo dia passava por volta das dez horas e pedia o jornal. Ficaram amigos e de vez em quando Solon piscava para o rapaz e anunciava “tem um presente para você aí dentro”. Era a senha. Dentro, o jornal standard escondia o Novos Rumos, um tabloide do partido comunista. Apesar da clandestinidade do PCB desde 1947, o jornalzinho revolucionário circulava sem maiores dificuldades até o golpe de 1964, quando terminou servindo de passaporte à ruína de alguns poucos assinantes.
Poucos dias depois do golpe, os militares chegavam com o jornal no endereço. E se o sujeito estivesse em casa, ouvia a voz de comando:
– O senhor vai me acompanhar…
– Por que?
– Já o senhor vai saber.
– Está bom vou me vestir…
– Não, vai assim mesmo…
– Mas isso é um absurdo…
– Lá o senhor reclama..
– Lá aonde?
– Já demoramos muito, o senhor vai reagir?
– Não, não, conformou-se Valdemar bancário que residia na Avenida Juracy Magalhães, entrada da cidade, enquanto era empurrado para o jipão de guerra parado na porta de casa. O jipe arrancou em alta aceleração como convinha a operações militares, levando Caúca, um sargento do batalhão local da PM, e dois soldados do exército armados de fuzil, mais o motorista, um cabo verde-oliva. Valdemar demorou meses para voltar e na rua demorou muito para o fato cair no esquecimento.
Por essas e outras, os presentes do velho Solon eram envolvidos em suspense, mesmo sendo exemplares antigos, alguns incompletos, amarelados pelo tempo, que o jornaleiro encontrava perdidos em algum canto. Aparentemente não havia mais perigo, não havia espaço para doutrinação política. O jornalzinho fora obrigado a sumir em 1964 e a prudência dos mais velhos orientava a esquecê-lo em definitivo e a manter enterrado nos quintais junto aos livros de Josué de Castro, Celso Furtado e Paulo Freire, “chefões comunistas que ameaçavam o país”. Os velhos comunistas reais haviam passado por períodos de clandestinidade entre 1922 e 1947. Agora, depois de uma fase de certo afrouxamento em que se falava e discutia tudo abertamente, estavam novamente nas sombras. Sábios velhos comunistas de Alagoinhas. Em 1964 tinham sido ultrajados, perseguidos e presos pela tropa alagoana que ocupou a cidade. O que sobrou deles passaria por infortúnio semelhante quatro anos depois.
Com o jornal embaixo do braço, o menino subiu a rua na direção da emissora, assobiando Siboney sucesso latino que aprendeu a dançar nas matinais de radiola no ACRA, o clube social. Não pensava em revolução, mas sabia que o Jornal da Bahia era feito por antigos comunistas e detestava norte-americanos, tanto quanto detestava os militares, que manipulados por eles, deram o golpe. Era uma fase em que encontros estudantis deixaram de existir em Alagoinhas, no máximo a eleição do grêmio estudantil, supervisionada pela direção da escola, supervisionada por eles. Mas, no primeiro congresso de secundaristas que participou em Salvador, ajudou a escorraçar o gordinho meio calvo que parava uma Kombi cheia de coca cola e cachorro-quente na porta do prédio dos servidores públicos, na Rua Carlos Gomes, e acabava as assembleias, em que assuntos importantes eram debatidos, porque todo mundo corria para saborear as novidades. O gordinho era safo. Mantinha-se ao volante e escapulia antes de a turma pegá-lo. Dizem que era patrocinado pelo consulado americano em Salvador.
– Oi Alírio, vira essa cara pra lá. Vamos entrar no ar na hora certa, disse ao entrar no estúdio ao sonoplasta de cara amarrada, pois já passava das onze horas.
O estúdio era um retângulo de sete e meio metros quadrados, dividido pelo vidro do aquário. Na parte maior ficava a sonoplastia. Uma mesa de bom tamanho, cadeiras, armários, uma picape uma de cada lado, microfones, pilhas de discos 78RPM, gravadores, mesa de som com tecnologia limitada a subir e descer o áudio. Era movido pela agilidade do profissional ao manusear com mãos e dedos rapidíssimos os discos e fitas de música, os comerciais. Do outro lado do aquário, uma saleta bem menor, uma mesa pequena, duas cadeiras, um microfone e um lâmpada forrada de papel celofane vermelho no alto do vidro acionada quando necessário pelo sonoplasta para chamar a atenção do locutor. Os dois lados pintados de branco, os dois lados com crucifixos nas paredes posteriores.
O apresentador sentava-se, abria o jornal, marcava notícias, títulos, rabiscava sobre as matérias, tirava do bolso folhas de papel pautado, manuscritas, com os assuntos locais do dia, ou que sobraram de ontem, de anteontem… Às onze e quarenta o sonoplasta saía do seu lado, corria ao lado da locução para ver se estava tudo certo. Era orientação do diretor. Não checava nada, apenas ouvia um “tudo ok” e voltava.
Sobe vinheta e desce rápido.
No ar o seu Noticiário N26, com as últimas notícias de Alagoinhas, da Bahia e do Mundo…
Sobe vinheta, desce…
Saigon
Um grupo de guerrilheiros vietcongues emboscou hoje tropa norte-americana que se deslocava de Saigon para Nha Trang causando pesadas baixas
O noticiarista não tinha noção precisa de que quase tudo o que lia, no ar ou não, “era propaganda imperialista”. Mas desconfiava. Por isso vasculhava notícias secundárias, nos pés de páginas, onde eventualmente percebia que os vietcongues, apesar de pequeninos e magros, de vez quando davam surras homéricas nos americanos.
O programa ficou no ar e durante três anos ganhou todos os concursos e diplomas de bom jornalismo de Alagoinhas. Também pudera, era o único, na única rádio. O apresentador, produtor, repórter, redator e editor não tinha remuneração, mas era feliz e orgulhoso do que fazia. Vez em quando enfrentava algumas observações pouco elogiosas das pessoas bem de vida e mais gradas quanto à linha editorial do programa.
– Você é um menino inteligente, mas é muito topetudo, acha que tem influência… Distorce as notícias. Eu leio Seleções do Reader´s Digest e sei que os comunistas jamais ganharão dos americanos no Vietnam. Você nem conhece a revista.
– É notícia tirada de jornal…
– Você sabia que o Jornal da Bahia é um jornal de comunistas incubados?
Em outras ocasiões teve de enfrentar filhos e parentes de ricos em discussões sobre a pobreza. E em especial porque dava pouco espaço aos comerciantes e à fina flor da sociedade. Ao contrário, era nutrido de notícias do Mangalô, Barreiro, Santa Terezinha, Alagoinhas Velha e outros lugares de periferia. O noticiarista não se abalava. O seu termômetro era o diretor da rádio, Célio Machado, que não era rico, nem morava nas ruas de rico. Discreto, tinha poucos comentários sobre o Noticiário N26, mas de vez quando deixava escapar palavras elogiosas que recebia de ouvintes. Era um veterano de rádio. Sabia o que fazia e o que ouvia.

FIQUE POR DENTRO